Por Ramiro Zwetsch
Quem teve a sorte te assistir ao vivo, pirou. Foi o caso de Bootsy Colins – lendário baixista do funk, que acompanhou tanto James Brown quanto os grupos Parliament e Funkadelic (ambos liderados pelo lunático George Clinton). “Fela apareceu e quebrou tudo. Eu nunca tinha assistido ou sentido nada igual a aquele som, tá ligado? Foi incrível e eu acho que absorvi tudo que eu estava ouvindo e vendo. Eu simplesmente trouxe aquilo de volta comigo e se tornou uma parte de mim.” Bootsy falava sobre o músico nigeriano Fela Anikulapo Ransome Kuti que, como bem descreveu, costumava causar estrago pelos palcos por que passava.
O próprio James Brown também ficou impressionado quando’ o viu tocar (provavelmente, em alguma data perdida na década de 70). “Quando estivemos em Lagos, visitamos o clube de Fela Ransome Kuti. A banda dele tinha um ritmo forte.
Acho que Clyde absorveu um pouco daquele som no seu jeito de tocar e Bootsy fez o mesmo”, escreveu, em sua autobiografia, referindo-se ao baixista e a Clyde Stubblefield, um dos bateristas que tocou por mais tempo com Brown.
As lembranças dos dois músicos – ambos figuras essenciais na concepção do funk norte-americano – ilustram uma das mais saudáveis trocas de referências que já brindaram a música, já que o próprio Fela Kuti não escondia a influência que o soul de James Brown exercera na sonoridade de sua primeira banda, The Koola Lobitos (formada em 1961e rebatizada, oito anos depois, para Nigeria 70).
O batera Tony Allen, fiel escudeiro de Fela, também guarda recordações do encontro com os JB's. "Eles foram ao nosso concerto e o diretor musical de James Brown sentou-se bem ao meu lado. Enquanto ele observava o movimento dos meus pés, eu rachava o bico", disse em entrevista à revista Wire.
Tony Allen, porém, disse à Radiola que não conheceu James Brown pessoalmente. Leia a entrevista com o baterista.
GARANHÃO NIGERIANO Naquela altura, Fela Já tinha iniciado uma trajetória sem precedentes na música. Tornou-se, no mínimo, o artista mais importante da Nigéria. Espremeu o funk e o jazz, adicionou tempero africano e garantiu o sabor do caldo com o seu próprio talento e a extrema competência dos músicos que formaram suas big-bands. Inventou o afrobeat. Gravou mais de 80 discos em 30 anos. Deu visibilidade para Tony Allen, um dos mais criativos bateristas em atividade
(clique aqui para assistir trechos de entrevista exclusiva e do show de Tony Allen em São Paulo).
Desafiou o governo Decidiu, em 1974, que sua residência seria um estado independente e lhe deu o nome de república Kalakuta. Depois de meter a boca nas autoridades, em um show de 77, viu sua mãe morrer durante uma invasão policial à sua casa.
A senhora Olufunmilayo Ransome-kuti, então com 77 anos, foi arremessada pelos invasores do primeiro andar de Kalakuta. Ficou 27 dias no xadrez. Em 1978, casou em uma mesma cerimônia com 27 mulheres (muitas delas dançarinas e cantoras de sua banda) e batizou todas com seu sobrenome: Anikulapo-Kuti. Se candidatou, em 1979, à presidência da república da Nigéria. Candidatura rejeitada. Foi preso de novo.
Dessa vez, em 1984, amargou 20 meses de reclusão. Morreu de Aids em 1997.
Paralelamente a tudo isso, Fela construiu uma obra absurda. Destacar um só álbum é até leviano. Foi na década de 70, com a retaguarda da banda Africa 70, que o músico disparou a maioria esmagadora de seus clássicos. Qualquer álbum do período, portanto, é tiro certeiro. “Fela’s London Scene” (70), “Roforofo Fight” (72), “Expensive Shit” (75) e “Up Side Down” (76) são alguns dos discos que a Radiola Urbana conhece e recomenda.
Em 1977, especificamente, o homem viveu dias inspiradíssimos. Naquele ano foram lançados “Sorrow, Tears And Blood”, “No Agreement”, “Zombie”, “Shuffering & Smile” e “Opposite People”. Todos clássicos.
Especialista na construção do grooves sólidos e duradouros, Fela gostava de sustentar a introdução instrumental por 10 ou 15 minutos – inserindo a melodia somente do meio para o final das músicas. Para isso, contava sempre com a levada de Tony Allen, linhas de baixo pulsantes e pontuação agressiva dos metais.
Como quase todas as faixas desse período duravam entre 15 e 20 minutos, os LPs dessa fase trazem quase sempre uma música de cada lado do vinil.
PRATO FEITO Boas coletâneas podem servir de petisco para quem ainda não degustou nenhum dos pratos do cardápio do chef Fella. “The Best Of Fela Kuti” (CD duplo) e o box de três CDs “Fela Anikulapo Kuti – King Of Afrobeat: Anthology” são suculentos aperitivos. Os mais famintos ou já iniciados podem se servir com algum dos quatro volumes do box set que oferece seis LPs originais – uma refeição completa.
Recentemente, uma espiã da Radiola encontrou o volume 3 da série por 50 euros na Fnac de Paris. Gravado em 1989, “Beasts Of No Nation” guarda importância simbólica justamente por surgir em um período distante da fase áurea da carreira do músico. A faixa-título (12:42 de duração) traz a voz de Fela já nos primeiros segundos e o elemento que demora a aparecer, aqui, são os sopros.
Com harmonização dos teclados em evidência, Fela e a banda Egypt 80 (um conglomerado de 30 músicos) conseguem submeter a herança da sonoridade da Afrika 70 para uma sutil variação – que se percebe também, na intervenção das seis vozes de apoio e no timbre do cantor, mais suave em alguns momentos. Suavidade que vocifera alguns dos versos mais ácidos do nigeriano.
Já na capa do álbum, o músico já indica para quem é o recado: a ilustração mostra lideranças do período (o presidente norte-americano Ronald Reagan, a primeira-ministra da Inglaterra Margaret Thatcher e o presidente da África do Sul, P.W. Botha) caricaturizadas como vampiros, com sangue saindo por suas bocas.
GOODFELLAS A química rara de groove com engajamento chamou atenção de algumas das figuras mais inventivas do hip hop atual. “Eu respeito o esforço de Fela em tentar promover uma mudança positiva por intermédio de sua música.
Seu som é um dos melhores que eu já ouvi”, disse certa vez, por exemplo, Adam Youch dos Beastie Boys
(clique aqui para ler texto da Radiola Urbana sobre Beastie Boys).
Uma boa amostra da afinidade do hip hop com a música do nigeriano está no disco “Red Hot & Riot”, da organização Red Hot – um tributo à música de Fela. Uma das melhores faixas do álbum, “Kalakuta Show”, por exemplo, reúne Mixmaster Mike (DJ dos Beastie Boys), Lateef (MC do Latrix) e Gift of Gab, rapper do Blackalicious – grupo que buscou em “Colonial Mentalaty”, o sample para uma de suas melhores músicas: “Smithozian Institute of the Rhyme”, do disco “Nia” (2000).
A química é infalível: os dois rimadores fazem duelo sobre a base de afro-beat (modificada e acelerada pela intervenção do DJ) e o resultado é de espalhar euforia na pista de dança. A outra faixa fundamental do disco promove o encontro dos rappers Talib Kweli e Dead Prez com o brazuca Jorge Ben Jor e o grupo Positive Force (conglomerado de ex-integrantes das bandas de Fela). A versão para “Shuffering & Shmiling” é surpreendente: Ben Jor tira do gogó o mesmo falsete dos tempos em que se chamava só Ben (êxito somente comparável à participação do mesmo Jorge na música “Malungo”, da Nação Zumbi pós-Chico Science) e a fusão bem dosada de rap, metais felakutianos e guitarra benjoriana explode nos ouvidos como massagem sonora. Aos durangos, resta uma boa pesquisa no Kasaa ou genéricos.
Quem quiser os discos, em CD ou vinil, terá que desembolsar o desgostoso preço da importação – mas, pode ter certeza, o deleite vale o investimento.
Leia mais sobre Fela Kuti aqui:
http://www.redhotriot.com/
http://www.felaproject.net/
E clique aqui para ouvir nosso programa de rádio em homenagem ao Fela Kuti
Fonte : www.radiolaurbana.com.br
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